A Esposa de Tchaikovsky

Uma paixão autodestrutiva*

O filme anterior do cineasta russo Kirill Serebrennikov chamava-se A Febre de Petrov – a história de um quadrinista acometido por uma febre que insiste em não se curar em meio ao caos da vida pós-soviética. Mas o clima febril e delirante parece fazer mais sentido para este novo filme do cineasta, A Esposa de Tchaikovsky, já em cartaz nos cinemas brasileiros.

O diretor adentra no tumultuado relacionamento do grande compositor de música clássica com a jovem Antonina Miliukova (Alyona Mikhailova). Porém, faz isso a partir do estado de obsessão que ela passa a nutrir pelo músico, pouco antes dele se tornar o compositor mais famoso da Rússia.

A Esposa de Tchaikovsky acompanhará esse relacionamento de altos e baixos que acabou por se tornar um casamento de fachada. Isso porque os rumores de que Tchaikovsky (Odin Biron) fosse homossexual já circulavam pelo país – boatos que o incomodavam muito e podiam atrapalhar sua carreira em ascensão, já que se assumir não era uma opção na conservadora sociedade russa. No entanto, nem isso foi capaz de abalar o fervor com o qual Antonina se lançou a essa paixão corrosiva e desigual.

Na verdade, ela acaba se aproveitando do fato para propor um acordo com Tchaikovsky (ela tinha um dote razoável para oferecer) e, assim, consumar o casório. É uma espécie de tragédia anunciada que nenhum dos dois conseguiu antever, levando ambos a um desgaste emocional enorme. No caso dela, houve consequências claramente psicológicas, e sua adoração por ele parecia ser inversamente proporcional ao despeito dele em relação ao casamento.

O diretor, no entanto, está do lado da mulher e é o seu calvário de humilhações e provações que ele passa a acompanhar na medida em que ela insiste nesse amor louco. Em alguma medida, os acordos e sentimentos de ambos são bem claros: ela declara todo o seu amor por ele, sendo ela justamente quem começou aquilo tudo; ele, por seu turno, lhe oferece um amor de “irmão”, nada mais do que isso, sem lhe prometer em nenhum momento a correspondência àquela paixão dela. As cartas estão na mesa, mas as obsessões são maiores do que os caminhos da razão.

Delírios de amor

Logo numa das primeiras cenas do filme, vemos Antonina, abatida, chegar ao velório de Tchaikovsky – o compositor morreu de um surto de cólera em 1893; àquela época, eles já estavam separados, apesar de que Antonina nunca deixou de pressionar e assediar o homem. Assim que ela entra no salão fúnebre, o morto se levanta e começa a lançar sobre ela impropérios e acusações as mais cruéis, culpando-a pelo fracasso do casamento.

É a esse tipo de arroubo dramático que se lança A Esposa de Tchaikovsky. O filme não quer ser uma biografia convencional de Antonina, muito menos do compositor, e abusa dos delírios e sonhos os mais bizarros que ela desenvolve na sua sanha irrefreável de ainda reconquistar o amor de sua vida.

Serebrennikov sustenta até o fim esse tom que foge ao realismo, entregando-nos aos delírios da personagem, fazendo do filme um simulacro da própria psique perturbada da mulher. A fotografia soturna dá conta não apenas do retrato de uma sociedade que enxerga os casamentos ainda como um negócio entre famílias, mas principalmente como modo de salientar o pensamento tomado de nebulosidade de Antonina.

O filme destaca datas importantes e momentos cruciais para eles, mas não se apega a esses detalhes como forma de representação fidedigna da realidade. Ou seja, a matriz da trama é a trama real dos dois personagens históricos e dos seus (des)caminhos de vida, mas o enlace narrativo do filme faz uso de certa liberdade poética que os coloca em situações hipotéticas e não-didáticas.

É o tipo de brecha que se abre pelas frestas das biografias, ainda mais quando o foco são pessoas que figuram à margem de sujeitos históricos e artistas importantes, como é o caso de Tchaikovsky. Antonina, aliás, por muito tempo foi retratada como uma mulher insana que serviu apenas para atrapalhar e atormentar o grande gênio da música, quando não acusada de ninfomaníaca – ela, de fato, teve relações sexuais com outros homens, inclusive engravidando de um deles.

Círculo de pesares

De qualquer forma, e mesmo no intuito de rever a vida de Antonina e lhe trazer mais nuances, A Esposa de Tchaicovsky não consegue aprofundar muito nas razões e motivos que explicam o comportamento arredio dela para com o compositor, para além da paixão cega que ela desenvolveu. A própria escolha em não fazer um filme de caráter biográfico e revisionista acaba por dificultar uma posição que seja mais taxativa sobre ela.

Por outro lado, o filme não cai na armadilha de investir na caricatura da amante louca, algo que poderia facilmente tornar a personagem uma simples megera controladora. Antonina insiste no relacionamento, enfrenta o mundo e todos aqueles que se postam à sua frente – mesmo que padeça no caminho, já que não possui nenhum talento artístico nem riquezas que a elevariam ao status de mulher poderosa na sociedade russa patriarcal.

Ela empreende suas constantes tentativas de conquista e reconquista com certa dignidade. Mesmo depois da separação, ela ainda nutria esperanças de uma reconciliação entre os dois. Com isso, o filme cai numa espiral de dores e pesares que a faz rodar em círculos, de loucura e de esperança vã.

A atriz Alyona Mikhailova faz um trabalho exemplar na maneira como constrói essa mulher no meio termo entre a alienação e o amor incondicional, algo que nunca permite que a personagem desbanque para o satírico. Antonina está repleta de desejo e força de vontade; falta-lhe, no entanto, o amor próprio.

A Esposa de Tchaikovsky (Zhena Chaikovskogo, Rússia/França/Suíça, 2022)
Direção: Kirill Serebrennikov
Roteiro: Kirill Serebrennikov

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 23/04/2023)

 

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