Medusa

Mulheres que gritam*

O cinema de horror feito no Brasil nos últimos anos tem se destacado com uma produção rica, revelando diversidade e originalidade. A cineasta carioca Anita Rocha da Silveira é, certamente, um dos maiores expoentes desse cinema feito por muitos cineastas jovens. Ela acaba de lançar nos cinemas seu segundo longa-metragem, Medusa, depois de circular por diversos festivais e conquistar muitos prêmios – o filme foi o grande vencedor do Festival do Rio em 2021.

O longa acompanha um grupo de garotas que se reúnem ao redor de uma igreja de inclinação evangélica e ultraconservadora. Mariana (Mari Oliveira) protagoniza a história e compõe o grupo de jovens autodenominadas de “As Preciosas do Altar”. Inicialmente, elas cantam no coral da igreja, mas, à noite, saem às ruas mascaradas em busca de adolescentes consideradas “impuras” e “promíscuas” na tentativa de convertê-las à força.

E é usando a força física mesmo. A primeira cena do filme mostra como age essa espécie de “gangue da evangelização”: ao encurralar a vítima (que pode ser uma garota lésbica ou apenas uma que perdeu a virgindade antes do casamento e possui uma vida sexual ativa, ou seja, um comportamento que elas lêem como algo obsceno diante de Deus), começam a espancá-la até que a jovem se declare arrependida dos seus atos.

Já durante o dia, as garotas vivem suas vidas de “princesa”, em especial Michelle (Lara Tremouroux), uma influenciadora digital para quem “aparência é tudo”, que dá dicas de maquiagem e de como tirar fotos que não agridam sua imagem de mulher recatada e do lar. É nesse clima frou-frou rosa choque, escondendo o cinismo violento da doutrina de conversão, que Mari começa a questionar o seu lugar, principalmente com a chegada de uma nova garota, vinda do interior, que precisa ser inserida no grupo.

Apesar disso, Medusa possui outras camadas: “O filme começou a ser desenvolvido em 2015 e, antes de ser sobre rivalidade feminina, é mais sobre o machismo estrutural, e a rivalidade é uma consequência disso”, defendeu a diretora durante a coletiva virtual feita para a imprensa.

“E eu não queria que fosse um filme pesado. É um filme de horror, mas com toques de humor, com elementos musicais; para mim é importante ter a risada junto com o horror. Talvez hoje a plateia veja o filme com mais leveza do que há dois anos”, complementa Silveira.

Medusa mergulha o espectador em um universo quase alternativo, entre a realidade (por que as questões tratadas no filme são do nosso mundo real) e o onírico, em que os jovens parecem dominar – há poucos personagens adultos no filme – um mundo quase plástico, enfeitado, mas também medonho e assustador.

Igreja de neon

“O neon está de volta”, afirmou, com felicidade, a diretora. O aspecto estético de Medusa, com suas cores fosforescentes e seus sons metálicos, inclusive no ambiente religioso, faz do filme um belo corpo estranho que já é uma marca autoral de Silveira, algo presente no longa anterior da diretora, o ótimo Mate-me Por Favor. Isso acaba por reforçar esse lugar incerto em que a narrativa se constrói.

Silveira contou que suas maiores referências são os filmes de terror das décadas de 1970 e 1980, em especial os giallos italianos: “A grande inspiração é Suspiria, do Dario Argento, mas também Carrie – A Estranha, do Brian De Palma. Queríamos prestar homenagem a esses e a muitos outros cineastas desse período que a gente ama”.

Mas o horror de Medusa tem um pé no mundo real. “Tenho certo fascínio por igrejas com neon. A gente se inspira numa igreja norte-americana para compor a estética do filme; já no discurso, a inspiração é uma igreja brasileira”, pontuou a cineasta. É daí que o filme retira o comportamento moralista de alguns personagens que tão cegamente seguem preceitos de violência e opressão, travestidos de inclinação cristã.

A diretora, no entanto, defendeu uma relativização sobre a forma de pensar esses grupos religiosos: “Minha intenção com Medusa nunca foi criticar a religião evangélica, não a considero uma religião de fanáticos, nem nada disso. No filme eu estou falando de certos grupos, de certos pastores e igrejas que usam as escrituras de uma determinada maneira que é homofóbica, machista e misógina. Quem conhece um pouco mais esse ambiente vai saber de quais igrejas e pastores eu estou falando”.

Beleza com culpa

Há muitas variações do mito grego da Medusa. Ela é descrita como uma górgona, ser monstruoso que petrificava as pessoas que olhassem diretamente para seu rosto. Sua feiúra, no entanto, tem razão de ser na maldição que a deusa Atenas lançou sobre ela, incomodada por sua beleza; em outras versões era porque Medusa teria tido relações sexuais com Poisedon e deveria ser punida por isso.

Independente de qual seja a versão correta, o filme de Silveira coloca em questão a rivalidade feminina a partir da imposição pela beleza plástica, pelo corpo perfeito e pelo comportamento casto e pudico. Nesse sentido, a personagem Melissa (interpretada numa pontinha por Bruna Linzmeyer) é quase como o espelho da Medusa na trama.

Conta-se que era uma mulher lindíssima que viveu naquela cidade, mas tinha um comportamento totalmente despudorado e desavergonhado. Confrontada por mulheres de fé, ela teve seu rosto queimado com água fervendo e, desde então, vive escondendo seu rosto deformado. As meninas vibram com essa história, mas em Mari isso desperta um desejo de encontrar essa mulher, o que provoca questionamentos no seu jeito de ser e pensar.

A atriz Mari Oliveira, também presente na coletiva virtual, falou sobre a questão: “A personagem passa a buscar sua essência na trama. A grande virada dela é se perguntar se ela faz o que faz porque ela realmente acredita naquela doutrina ou se é porque falaram que aquilo é o certo a se fazer”. Entre os caminhos da fé e o da libertação feminina, Medusa investiga o horror das ideologias impostas às mulheres, seja no mito, na fantasia ou na realidade.

Medusa (Brasil, 2021)
Direção: Anita Rocha da Silveira
Roteiro: Anita Rocha da Silveira

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 19/03/2023)

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