Noites Alienígenas

Mundos em colisão*

Não é todo dia que um filme feito no Acre chega ao circuito comercial do país. Noites Alienígenas, longa-metragem do cineasta Sérgio de Carvalho, é este marco no cinema nacional recente, sendo o primeiro longa feito no Estado. As qualificações não param por aí: foi o grande vencedor do Festival de Gramado ano passado, como Melhor Filme, e ainda conquistou prêmios para alguns de seus atores, além do prêmio da Crítica.

Não é pouca coisa para uma cinematografia que está começando a mostrar sua cara dentro do cenário nacional, dadas as políticas públicas de descentralização da produção que vem acontecendo nos últimos anos. Noites Alienígenas, ainda por cima, dialoga com o cinema brasileiro a partir de duas vertentes principais: a vida dos jovens e sua perspectiva de futuro, além do tema da criminalidade que lança o filme para um registro realista, ainda que permeado por traços fantasiosos.

A trama acompanha a vida de alguns desses jovens que residem em Rio Branco, mais perto de uma periferia da cidade, e vivem o dilema de ter de escolher um caminho a seguir na vida. Rivelino (Gabriel Knoxx) faz rimas de rap, mas seu trabalho atual é em uma boca de fumo; mantém um namoro escondido com Sandra (Gleice Damasceno), que pensa em sair daquela cidade para estudar Medicina fora, talvez na vizinha Bolívia.

Já Paulo (Adanilo) é um dependente químico que vive rondando seus familiares em busca de dinheiro para alimentar o vício. Ele tem um filho pequeno com Sandra, casal que se desfez pelos descaminhos de vida que ele seguiu. Todos esses personagens encaram as possibilidades de um destino em aberto, tentando encontrar uma forma digna de se manter – a chamada vida adulta.

O Acre – na fronteira com a Bolívia e com o Peru, sofrendo com a chegada de grupos de narcotráfico vindos do Sudeste brasileiro – viu o aumento da violência e de assassinatos na região, tendo como principais vítimas justamente os jovens e adolescentes. No próprio filme, há duas facções rivais que lutam pelo mercado de venda de drogas no lugar.

Um dele é comandado por Alê (Chico Diaz), a quem Rivelino deve fidelidade. Ele é quase como um pai para o garoto, que vive com a mãe solteira (Joana Gatis) – outra realidade que o filme aponta é esta configuração de família em que a figura paterna está ausente. O mesmo acontece com Paulo e, agora, é também um fato para Sandra.

Acre fantástico

É Alê, aliás, quem recomenda a Riva que o jovem busque ampliar seus horizontes, sair da estagnação. Mas o papo dele tem mais a ver com energias siderais, a imensidão do universo e com outros mundos possíveis – na casa dele, há um pôster com o desenho de um disco voador estilizado feito por Riva – e até com vida fora da Terra.

Nesse sentido, e ainda que esteja muito interessado em discutir os problemas sociais dos jovens no Acre atual, Noites Alienígenas também vislumbra certas associações com a ficção científica, que aparece aqui e ali nas falas de alguns personagens, até surpreender o espectador em um momento chave da trama. Talvez como forma de romper com o absurdo da realidade, os tons de fantasia se confundem com a vida cotidiana de modo simbiótico.

Tal dimensão se faz presente em consonância também com todo o imaginário religioso e mítico da Amazônia nativa, pontuado pela força ancestral da floresta e da Natureza onipresente – mesmo em meio ao espaço urbano. Aparece também na presença miscigenada dos moradores locais, alguns deles indígenas de berço (como é o caso de Paulo e sua mãe, vivida pela atriz Chica Arara).

Curioso notar que a mãe de Paulo frequenta a igreja evangélica da região, mas quando as coisas apertam, ela apela para as forças ancestrais dos cultos indígenas de seu povo. Isso reforça ainda mais as contradições e as marcas da multiculturalidade que o filme enquadra nessa realidade contemporânea.

Interessante pontuar como o filme recupera uma imagem da Amazônia urbana, longe dos cartões postais e das caricaturas do povo da floresta através das quais essa região do Brasil é geralmente retratada nos filmes. Fora dos lugares-comuns, o espaço urbano de Rio Branco ganha destaque como paisagem por onde trafegam esses indivíduos (também mais complexos do que tipos previamente definidos) em busca de seu lugar ao sol.

Identidade brasileira

Noites Alienígenas possui muitos personagens e nem sempre eles são desenvolvidos a contento. Kika Sena (protagonista do filme Paloma, de Marcelo Gomes) faz uma ponta aqui, mas desaparece da trama sem muitas explicações. Ela possui uma forte amizade com Sandra, que também ganha menos destaque na parte final do filme.

De qualquer forma, apesar de ter uma trama bastante direta que cerca os três enredos principais entrecruzados, Noites Alienígenas é também um filme que coloca em evidência uma série de questões, seja do âmbito íntimo e familiar, como daquele de cunho social e político.

Não deixa de ser um retrato pulsante da juventude de um Brasil poucas vezes visto na tela, dado o contexto local do Acre, mas que representa uma realidade vivida em muitas outras cidades, grandes e pequenas, do país. A marginalidade, o caminho das drogas, a responsabilidade paterna, a violência do narcotráfico, o grito de liberdade através da batalha de versos, o poder dos afetos; tudo isso está amalgamado em uma rede de tramas e pessoas que refletem a identidade brasileira.

E o filme não apresenta apenas uma dessas realidades em transformação, mas mundos diversos e coexistentes que se interconectam e se tensionam a partir das vivências e das escolhas de vida de cada um. Nem sempre tais escolhas são as melhores, assim como esses mundos vivem entrando em colisão constantemente. O que resta é a vontade de seguir lutando.

Noites Alienígenas (Brasil, 2022)
Direção: Sérgio de Carvalho
Roteiro: Sérgio de Carvalho, Camilo Cavalcante e Rodolfo Minari

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 02/04/2023)

 

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