Olhar de Cinema: Neirud

As imagens de arquivo familiar que a diretora Fernanda Faya encontra e passa a investigar revelam algo curioso (elas sempre nos revelam): a presença constante da sua tia Neirud, uma mulher negra em meio a uma família majoritariamente branca. Seu pai destaca a linhagem estrangeira e cigana de parte da família, especialmente de sua mãe Nely, avô de Faya. Mas no geral, a mistura se esconde por sob peles claras. A origem da tia Neirud, para a Fernanda mais jovem, sempre lhe pareceu um enigma, algo que se torna o ponto de sua investigação neste longa.

Vindas de muitas fontes distintas, as imagens de arquivo sedimentam a narrativa que tenta dar conta, inicialmente, dos traços biográficos da tia, que pouco se abria e contava de sua vida para os mais jovens. Fernanda se depara com muitas ausências de imagens e registros dela, algo estranho vindo de uma família de tradição circense. Tanto a avó Nely, quanto Neirud trabalhavam no Circo Coliseu, que elas mesmas administravam, junto com outra amiga.

Neirud especializou-se na encenação de luta livre, criando uma personagem para si mesmo, a Mulher Gorila, dado o seu porte físico avantajado. Enfrentando a proibição de mulheres praticarem tal atividade e o próprio preconceito de gênero, ela seguiu se apresentando e fazendo muito sucesso enquanto o circo esteve de pé. Mas muita coisa se esconde por baixo das aparências e das personas pelas quais Neirud e sua avó Nely assumiam para Faya, com certas mutações, ao longo do tempo. Narrado e conduzido em primeira pessoa, a diretora investiga como essas figuras femininas eram construídas pelo seu olhar, aquilo que deixavam a ver, e principalmente o que se omitia no seio familiar.

Nirud se constitui como um tradicional documentário de busca (que é sobre o outro, mas acaba sendo um gesto de autoconhecimento também). Um dos méritos do filme é a cadência narrativa com que ele é montado, nos introduzindo àquele microcosmo familiar à medida que a própria diretora reconfigura e desvenda os papéis de cada uma. A história tem o frescor das descobertas, que se tornam mais surpreendentes por estarem tão perto da realizadora, ali no seio da família, muitas vezes escondidas, negadas ou apenas omitidas no ambiente de casa.

Com isso, o filme toca muito sensivelmente em um tema complexo da sociedade brasileira: a constituição imbricada de muitas famílias, dada a formação irregular e multicultural de nosso povo, marcado por diversas violências e fluxos migratórios, invasões e abandonos. É um passado que muitos não querem revolver, silenciando e apagando rastros dentro do próprio ambiente doméstico. São os não-ditos familiares que rodam como fantasmas, esses que a diretora tenta espantar na busca por mais pistas que levam ao descortinamento da vida da tia.

O tom confessional do filme carrega o processo de descortinamento dos “segredos” familiares como um curso natural de descobertas e novidades que se abrem à diretora a cada interlocução (com o pai, com a terceira administradora do circo, a argentina Rebeca, e até com as próprias imagens encontradas), mas é possível notar nas entrelinhas uma construção que lança mão de certos artifícios ficcionais e dramáticos no percurso de busca que a diretora constrói. Diante da ausência de imagens – especialmente das lutas no circo e tudo aquilo que envolve o trabalho de Neirud –, Faya cria um arco narrativo com direito a suspense, pistas, ganchos e recompensas, que podem ou não ser ensaiadas (como as conversas ao telefone com o pai diante da tela preta), favorecendo a narrativa contada.

As imagens que faltam acabam por favorecer a investigação, especialmente porque suas personagens (Neirud é central aqui, mas a avó Nely também não fica para trás), nas suas duplas (ou mesmo terceiras) identidades, são incríveis, com suas contradições e escolhas de vida. Ao expô-las, o filme não necessariamente aprofunda tais questões, mas vislumbra uma série de apontamentos que atravessam a formação da sociedade brasileira e os dilemas raciais, sexuais e comportamentais que, mesmo bem aceitos dentro da família, ainda deixam lacunas nas pessoas porque não são confrontadas com a devida atenção.

Neirud (Brasil, 2023)
Direção: Fernanda Faya

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