Olhar de Cinema: Toda Noite Estarei Lá

A ideia de resistência tem sido bastante explorada no cinema brasileiro quando se fala das lutas das minorias e causas sociais. Poucas imagens documentais representam tão bem esse conceito, aliado à ideia de resiliência, quanto a de Mel, uma mulher trans protestando, solitária, em frente à igreja evangélica que a tem proibido de frequentar os cultos. Ela é simplesmente barrada na entrada pelos seguranças que mantêm as portas fechadas. Ela tenta na Justiça reaver o seu direito de participar dos encontros na igreja que agora a expulsa por não aprovar sua nova identidade transgênera.

A luta constante de Mel está registrada em Toda Noite Estarei Lá, das diretoras capixabas Suellen Vasconcelos e Tati Franklin. Na periferia de Vitória, no Espírito Santo, ela mantém um salão de beleza e tem como única companhia sua mãe idosa, elo amoroso que se sustenta mutuamente. Seria mais simples e menos desgastante para ela encontrar outra igreja para professar sua fé, mas ela segue fiel ao princípio de que ninguém pode lhe tirar o direito de louvar a Deus onde quiser.

O filme a acompanha desde o ano de 2017, passando por vários momentos espaçados, como a eleição de Bolsonaro, em 2019 (demarcação temporal central para se pensar a ampliação das vozes conservadoras no país, reforçando os discursos de ódio e opressão já existentes na sociedade brasileira), até os anos da pandemia em que os hábitos de todos mudaram radicalmente. Menos a fé de Mel, que continua inabalável.

Ela é de fato uma pessoa muito religiosa, no sentido estrito do termo definido como aquele que é comprometido com o serviço divino. As palavras de Deus e os dizeres bíblicos estão espalhados em sua casa, no seu salão e nos cartazes que ela insiste em levar para a porta da igreja todas as noites, desde que passou a ser impedida de entrar ali. É justamente essa imagem dela, parada no outro lado da calçada, falando dos ensinamentos de Deus e da religião para quem quiser ouvir (os passantes na rua, os seguranças ou mesmo outros fiéis que entram e saem da igreja, alguns deles cumprimentando-a no caminho), em contraposição ao que ela tem vivido nessa situação. Essa sua figura é forte o suficiente para justificar a existência do filme.

Toda Noite Estarei Lá amplia o retrato dessa mulher trans e seu cotidiano que passou a incluir a militância em prol de uma causa maior, mas primeiramente em relação a sua própria situação diante daquele impasse. Ela fala por muitas travestis que tiveram destinos piores que o dela, mas aparece sempre sozinha ali naquele embate (apenas uma amiga, assumidamente lésbica, a ajuda em uma das noites). Há uma rede de apoio de familiares e amigos, mas o corpo que se desloca para a frente da igreja, incansável, é apenas o dela – um corpo de 54 anos de idade, diga-se.

Muito sutilmente, as diretoras e a equipe do filme transmitem uma comunhão muito grande com a causa da personagem, o que fica evidente quando eles, fora de quadro, defendem o direito de Mel ser chamada de “ela” e de ser tratada no feminino diante da recusa de uma funcionária do tribunal de justiça onde Mel busca respaldo jurídico para frequentar sua antiga igreja. Outro gesto ampliador do que é a vida dessa mulher são os momentos de certa felicidade celebrados como vitória: a festa de aniversário, quase como uma celebração religiosa, comemoração de mais um ano de vida, o que para uma pessoa trans significa muita coisa; e a compra de um carro, usado, mas por muito tempo sonhado.

Toda Noite Estarei Lá mantém viva a voz dessa mulher no seu enfrentamento diário. Curiosamente, ela tem a seu lado a lei de Deus e a lei dos homens. Ambas professam o amor ao próximo e o respeito, o direito de ir e vir, a liberdade de expressão e de culto e estão de acordo com os anseios e desejos dela. Mas não basta a palavra escrita, o documento assinado pelo juiz ou a Bíblia secular debaixo do braço. É a partir do seu corpo (político) que se travam as batalhas repetidas dia e noite.

Toda Noite Estarei Lá (Brasil, 2023)
Direção: Suellen Vasconcelos e Tati Franklin
Roteiro: Suellen Vasconcelos e Tati Franklin

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