Propriedade / Entrevista com Daniel Bandeira

Paranoia social*

O cinema brasileiro como um todo, mas especialmente as produções pernambucanas, tem mostrado real interesse em discutir temas sociais ligados ao embate entre classes sociais, a relação entre patrões e empregados, o direito à terra e moradia, casos de especulação imobiliária; enfim, toda sorte de conflitos que remetem ao passado desigual, arbitrário e violento de formação do Brasil e dos modos de vida do povo brasileiro, atualizados na contemporaneidade.

O longa-metragem Propriedade, já em cartaz nos cinemas comerciais, engrossa o caldo dessas produções e oferece ao espectador muitas camadas de debate social a partir de uma trama inusitada: a história de uma mulher de classe alta que, ao chegar à fazenda da família, acaba ficando presa e acusada pelos trabalhadores locais dentro de um carro blindado.

“Uma das coisas que eu queria fazer era um ‘suspense confinado’ em que o personagem está preso em algum espaço, com uma trama minimalista”, afirma o diretor Daniel Bandeira, que conversou com A Tarde sobre seu filme. Bandeira afirma ser fã de filmes de suspense e terror e com isso foi moldando a narrativa que extrapola os limites do mero cinema de gênero.

“À medida que o tempo passava, todo um clima de polarização social começou a pautar a vida do Brasil. E eu percebi que essa imagem inicial de uma mulher presa dentro de um carro tinha o poder de comentar muito bem essa situação política que a gente está vivendo”, observa o cineasta.

Essa mulher é Teresa (Malu Galli), que vive com o marido (Tavinho Teixeira) na capital pernambucana. Eles partem para a fazenda da família no interior a bordo do carro blindado que o marido acabou de comprar – muito por conta da tentativa de assaltado que ela sofreu há pouco tempo, tendo sido feita refém por um bandido armado no meio da rua.

Mal sabem eles que na propriedade rural de terras fartas, mas já há algum tempo sem muita produtividade, os funcionários que vivem e cuidam do local há gerações receberam a notícia de que o lugar vai ser vendida para a construção de um hotel de luxo. Sem saber do futuro e sem seus documentos pessoais e trabalhistas que ficam de posse do patrão, trancados em um cofre, eles acabam se rebelando. Quando os patrões chegam, a situação logo escala para outros níveis de violência e Teresa se tranca no carro blindado de onde se recusa a sair.

Os lados da questão

A personagem passa, então, a ser hostilizada por uns e adulada por outros, que querem que ela saia do veículo a fim de resolver a situação. Mas Propriedade vai mais fundo no debate que envolve os dois lados da situação. Segundo o diretor, o filme também aborda certa disposição da classe média em evitar encarar problemas de cuja origem ela faz parte, mas que estão de fora de sua bolha.

Teresa é uma artista plástica e parece não se envolver nos negócios do marido, mas isso não significa que ela não faça parte daquele cenário. “A omissão, o afastamento, o isolamento também já foram usados como arma de opressão no passado. A gente está num ponto de inflexão em que esses atributos não cabem mais. Eu acho que hoje a gente vive num momento de retorno de consequências. Alegar desconhecimento sobre as coisas não impede que você sofra as consequências desse estado de tensão do qual todo mundo faz parte”, pontua o diretor.

Ao mesmo tempo, o filme também é perspicaz na construção desse grupo de trabalhadores que não necessariamente pensa igual. “Me veio também a curiosidade de tentar entender quem são essas pessoas que estão do lado de fora do carro. Inicialmente eram apenas vultos, mas eu vou mostrando que se tratam de pessoas, de universos distintos, que estão colidindo”, complementa.

Com esse desenho narrativo, Propriedade potencializa a discussão sobre a ideia de posse. Por um lado, aqueles que trabalharam e fizeram a produtividade da terra    sentem-se parte integrante daquele lugar, mesmo em posição de subalternidade. Por outro, os patrões também gostam de pensar que aqueles indivíduos lhes pertencem – e é mais interessante ainda pensar que Teresa seja impelida a fazer daquele carro sua morada, tal qual uma propriedade onde ela se abriga naquele momento.

Torcidas e antagonistas

Na conversa com o A Tarde, Bandeira pontuou as discrepâncias em relação à maneira com o público tem encarado esse embate de forças sociais e ainda como isso se dá por conta de uma estrutura narrativa ligada ao cinema de gênero – além do suspense, o filme não nega suas boas doses de sanguinolência, com os personagens chegando mesmo às últimas consequências.

“Isso faz parte de certo código do cinema de gênero cuja estrutura estimula que você identifique imediatamente um protagonista, por quem você torce, e identifica também o antagonista, contra quem você torce. No final, você antecipa o embate e também a eventual vitória do protagonista”, explica.

O diretor defende, no entanto, que Propriedade propõe ao espectador um jogo duplo em que, dependendo do ponto de vista que você escolhe em um determinado momento, o outro é que se torna o antagonista. Mas afinal, para quem torcer?

“Eu apenas diria para as pessoas que é possível realmente você se identificar com um lado, mas também estabelecer uma ponte de empatia com o outro. É possível se identificar por essa pessoa que está traumatizada pela violência porque é um mal que acomete todo mundo. Mas é preciso ponderar qual é a origem dessa violência e principalmente qual é o seu papel histórico nisso, em que seja possível inverter essa violência”, pondera Bandeira.

Propriedade estimula, portanto, um exercício central de afastamento e compreensão de uma situação macrossocial de modo muito sutil, mas intenso. Vale dizer que o filme faz parte do projeto Vitrine Petrobrás que coloca em cartaz todo mês um filme nacional a preço mais acessível (R$ 20,00 a inteira).

Propriedade (Brasil, 2022)
Direção: Daniel Bandeira
Roteiro: Daniel Bandeira

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 24/12/2023)

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