Puan / Entrevista com Benjamín Naishtat

Filosofia viva*

O cineasta argentino Benjamín Naishtat sempre nos entregou filmes mais duros e pesados. Bem Perto de Buenos Aires (2014) tratava do medo social e das mazelas da violência urbana – filme que já chegou a ser comparado ao cinema brasileiro, apontado como o “Som ao Redor argentino”. O Movimento (2018), seu melhor filme, abordava alegoricamente o nascimento de um pensamento fascista na América do Sul, enquanto Vermelho Sol (2018) antevia, de algum modo simbólico, a Ditadura Militar.

É com surpresa, então, que vemos o diretor mudar completamente de tom em seu mais novo trabalho, intitulado Puan, já em cartaz nos cinemas brasileiros. Trata-se de uma comédia de erros que, curiosamente, aponta para alguma crítica social e política a partir da experiência argentina com a educação superior pública – muito similar com a brasileira, aliás.

“Me pareceu natural mudar de ares porque nunca houve alguma diretriz que me direcionasse a fazer sempre o mesmo tipo de filme. Era interessante e se mostrou muito natural, como cineasta, provar distintos gêneros, caminhos e formas de fazer cinema”, revelou o cineasta que concedeu entrevista para o A Tarde.

Naishtat divide os créditos de direção com María Alché, diretora do longa Família Submersa (2018) e também uma renomada atriz – protagonizou A Menina Santa, de Lucrécia Martel. Juntos, eles fazem de Puan uma divertida história de disputa acadêmica que coloca, de um lado, Marcelo Pena (Marcelo Subiotto), professor já com certa experiência na docência, e o prepotente Rafael Sujarchuk (Leonardo Sbaraglia), claramente mais egocêntrico e cheio de si. Eles brigam pela vaga de professor emérito da cadeira de Filosofia depois que o titular morre inesperadamente.

“Quando nos propusemos a colaborar juntos, eu e María chegamos logo à comédia, um gênero que nós gostamos muito e tínhamos muita vontade de explorar”, explica o diretor. “O filme anterior dela era um drama familiar, mas agora havia um desejo de ir a um lugar desconhecido. É como fazer uma viagem a um país totalmente novo”, complementa.

Matriz real

O mais interessante é que os dois cineastas, também autores do roteiro, escolheram focar em um universo muito realista e conhecido da comunidade acadêmica: Puan é como a Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires (UBA), uma das instituições de ensino superior mais renomadas da Argentina, é carinhosamente chamada já que sua sede fica na rua de mesmo nome.

“É um mundo muito particular, porque é um edifício um pouco precário, frágil, mas onde se estudam as coisas mais profunda da natureza humana, o sentido da existência. Há um contraponto interessante nesse lugar e isso acabou sendo substância para a comédia e para a construção dos personagens”, afirmou Naishtat.

O diretor pontua também o interesse mútuo que havia naquele universo acadêmico, uma vez que Alché foi estudante de Filosofia em Puan, e o pai de Benjamín foi professor universitária de Filosofia na UBA, mas em outra faculdade. “Era um universo muito conhecido da gente e a escrita do roteiro foi muito fluída por conta disso”.

Mas dessa vez não há nada de metafórico no filme. Puan é muito direto nas suas proposições, até porque trabalha na contraposição entre os dois professores de personalidades distintas. Rafael representa uma certa cara de modernidade, vindo de fora depois de ter passado um tempo na Espanha, mas um tanto alheio à realidade local.

Por outro lado, Marcelo é o mestre mais quieto, um tanto atrapalhado também, se deixando levar pelos outros; suas aulas podem não ser das mais animadas, mas ele encara com responsabilidade e afinco o ofício de elaborar sobre as ideias filosóficas mais clássicas.

O filme acaba fazendo graça de uma série de situações que envolve o personagem e as trapalhadas em que ele se mete involuntariamente, o que soa um tanto deslocado da imagem de um professor de Filosofia e, por vezes, um tanto difícil de comprar. Ao mesmo tempo, isso tira do personagem uma aura de seriedade excessiva que poderia ser facilmente associada a ele.

Os muros e a rua

O tipo de comédia a que Puan se entrega pode soar um tanto infantil para alguns espectadores. Os debates filosóficos que porventura aparecem aqui e acolá na trama também não são necessariamente bem aprofundados pelo roteiro, mas estão lá como provocações, mais do que como respostas acabadas – algo que, aliás, não é função da Filosofia.

“O filme opera com algumas perguntas que ficam em aberto. Uma delas é se o mundo da academia e dos intelectuais não estaria muito voltado para si mesmo e se não lhes falta olhar para a rua, circular nos espaços sociais onde mais se faz falta o mundo das ideias”, provoca o diretor.

Há, portanto, um interesse em discutir a validade do pensamento acadêmico para fora dos muros da Universidade, ainda que o filme faça isso através de uma postura cômica. E esse arco de transformação passa pelo comportamento de Marcelo – para evitar spoilers, basta dizer que ele vai precisar tomar certa atitude em um momento chave do filme, em contraposição à postura mais distanciada que ele assumiu durante toda a trama até então.

Nesse ponto, é impossível também ver Puan e não pensar nas recentes eleições presidenciais argentinas que culminaram com a vitória de Javier Milei, candidato assumidamente de extrema-direita. Sobre isso, Naishtat pontua: “Estamos ainda um pouco em choque com o que passou. Essa onda cresceu muito rápido, quase se pulverizou, mas quando nos demos conta já era tarde demais”.

O diretor, no entanto, acredita que é preciso seguir com o processo democrático e, assim como os personagens do filme, assumir uma postura crítica e ativa diante de tudo: “Creio que nossa atitude tem de ser a da imaginação. Temos que voltar a imaginar algo melhor, com formas novas, potentes, poéticas, solidárias, populares. Reimaginar a comunicação política. E a arte e a cultura possuem um lugar fundamental nisso tudo porque são a expressão da nossa identidade”.

Puan (Argentina/Brasil/Itália/Alemanha/França, 2023)
Direção: Benjamín Naishtat e María Alché
Roteiro: Benjamín Naishtat e María Alché

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 10/12/2023)

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