Vidas Passadas

O que poderia ter sido*

A comunidade asiática e latina – principalmente estes grupos – que vivem atualmente nos Estados Unidos tem aparecido com vigor nas telas do cinema. Filmes como Em um Bairro de Nova York, de Jon Chu, e Minari: Em Busca da Felicidade, de Lee Isaac Chung, sem contar o grande sucesso de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, dos Daniels, que conquistou o último Oscar, são exemplos da vontade de revelar a cara multicultural da América.

Em um momento em que tanto se destaca a vivência e as histórias dessas pessoas de origem ou ascendência estrangeira residindo nos EUA – na Europa e mesmo na América Latina o tema da imigração e dos refugiados é também muito marcante –, Vidas Passadas, de Celine Song, consegue fugir dos lugares-comuns de um tipo de narrativa sobre pertencimento, ainda que não esteja totalmente fora desta temática.

O filme não trata necessariamente da experiência de viver em um país estrangeiro que depois de um tempo passou a ser um verdadeiro lar, mas de alguma forma os personagens sentem o peso do deslocamento, em especial na maneira como isso acabou moldando os seus destinos de vida.

De origem coreana, Nora (Greta Lee) vive nos EUA com o marido Arthur (John Magaro), mas recebe a visita de um antigo amigo e amor do passado, Hae Sung (Teo Yoo), que ainda hoje reside no seus país natal. Vidas Passadas começa com esse reencontro, ainda não saibamos de cara quem são aqueles três indivíduos que conversam em um bar de Nova York na cena de abertura do filme.

Logo, somos levados em flashback a conhecer a vida dos dois asiáticos ainda crianças. A história de Nora e Hae se desnuda com muita fluidez na trama, e o filme coloca em questão a propensão ou não dos dois darem certo como um casal – trama já gasta dos destinos cruzados. O espectador testemunha os encontros e desencontros que fazem parte da vida dos dois e dos curiosos laços que os unem, mesmo quando a distância faz parecer que não há mais possibilidade de retorno.

O filme acrescenta ao dado do deslocamento geográfico o teor emocional que estas pessoas experimentam, a partir de uma história bem localizada entre essas duas almas interconectadas. Vidas Passadas mira nas distâncias, mas chega com muita suavidade ao melodrama, fazendo disso um drama intimista e de delicadeza ímpar.

Almas gêmeas

Vidas Passadas investiga aquilo que poderia ter sido para os personagens – nessa ou em outras vidas possíveis – se as circunstâncias os tivessem deixados juntos. O filme faz isso de forma cada vez mais aprofundada, mesmo que sua cadência paulatina não deixe perceber esse jogo de aproximação que amplia os desejos e as marcas de personalidade de cada um.

Os personagens chegam mesmo a discutir a ideia de conexão de espíritos – no sentido transcendental mesmo –, aventando a possibilidade ou não de existir essa coisa de almas gêmeas. Se Nora e Hae foram feitos um para o outro, por que seus caminhos se desencontraram? Há tempo ainda para frutificarem um romance? Ou há de se entender que, apesar das aparências, não era para ser?

Essas e muitas outras interrogações são lançadas pelo filme, sem que isso soe como uma seção de terapia sensitiva espiritual ou esotérica demais. São ideias até mesmo muito amadoras que apenas mascaram as dúvidas e incertezas de vida que eles têm – especialmente Nora que já tem um relacionamento aparentemente estável e feliz com o jovem esposo.

No fundo, Celine Song trata com muita delicadeza esses temas, aproximando-nos deles, mas sem querer teorizar muito sobre isso, muito porque ela está mesmo interessada nas marcas do melodrama sutil que elege como modo de pensar a conexão entre dois indivíduos, tão pertos e tão longe ao mesmo tempo. Vale destacar que este é apenas o primeiro longa-metragem dirigido por ela, o que demonstra uma mão muito firme e precisa para a escalada emocional que o filme constrói, paulatinamente.

A trama, também assinada por Song, para além da maturidade com que costura os (des)caminhos dos personagens, avança em um crescendo que culmina em um final realmente intenso e de grande complexidade emotiva. E ainda filma belissimamente Nova York e os espaços externos.

Passado e futuro

A noção de tempo é uma chave interessante de leitura aqui quando contrapomos o passado dos personagens, ainda vivendo na Coreia do Sul, e uma projeção de futuro com que o filme lida o tempo inteiro na sua parte final – quando se estabelece um maior tensionamento entre os personagens.

Mais uma vez, Song demonstra uma sutileza incrível na maneira como deixa isso claro não apenas para o espectador, mas também para os próprios personagens – e aqui chamando atenção para o trio envolvido, uma vez que o marido de Nora é figura essencial pela forma como está atento aos sinais e ao que circunda os dois amigos de longa data que precisam acertar, cada qual, os ponteiros de seus relógios emocionais.

Os atores possuem uma sintonia muito forte em cena, defendendo com afinco seus personagens, e talvez até mais que Teo Yoo é John Magaro quem melhor sintetiza a ponderação e o estado de suspensão que o próprio espectador pode experimentar diante da reparação que sua namorada e Hae promovem no seu reencontro.

Qual caminho escolher, então, já que as portas parecem abertas? Aliás, é destino ou escolha? São mais perguntas que Vidas Passadas lança, com toda sua delicadeza, diante das possibilidades daquilo que poderia ser.

Vidas Passadas (Past Lives, EUA/Coreia do Sul, 2023)
Direção: Celine Song
Roteiro: Celine Song

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 21/01/2024)

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