Pedágio

Hipocrisias internalizadas*

A cineasta paulista Carolina Markowicz lançou ano passado nos cinemas seu primeiro longa-metragem, Carvão – estreia com sucesso no festival espanhol de San Sebastián. Agora, apenas um ano depois, ela está com um segundo filme, Pedágio, já em cartaz nas salas de cinema.

Ambos os trabalhos são protagonizados pela atriz Maeve Jinkings, dessa vez vivendo uma mãe solo que mora com o filho adolescente na periferia de Cubatão, interior de São Paulo na Baixada Santista. Ela trabalha como funcionária de um pedágio nos arredores da cidade, mas o que tem lhe tirado o sono é o comportamento do filho.

Incomodada com o jeito peculiar do garoto e com os vídeos que ele grava e posta nas redes sociais dublando grandes divas da música mundial, Suellen é aconselhada por uma amiga a buscar para o filho um tratamento de “cura gay” promovido por uma igreja local com um pastor estrangeiro.

Tiquinho (Kauan Alvarenga), por sua vez, vive os dilemas de um jovem que busca suas primeiras oportunidades de emprego – sendo também um garoto de pele negra retinta –, enquanto aprende a lidar, com muita naturalidade, com seus desejos amorosos e sexuais. Aliás, o ator já havia trabalhado com a diretora no curta-metragem O Órfão, em que vivia um garoto adotado por um casal, mas rejeitado por conta dos seus trejeitos afeminados.

É como se Pedágio fosse a continuidade de uma discussão já posta ali no curta e que se intensifica pela complexidade de cada personagem. Suellen vive um relacionamento com Arauto (Thomás Aquino), que se diz segurança de casa noturna, mas que se mostra envolvido em esquemas mais escusos. Suellen pode até rejeitá-lo, mas também vai querer se aproveitar dessa situação, inicialmente para conseguir dinheiro a fim de pagar o “tratamento” do filho – a igreja cobra muito caro por isso.

E não é o caso aqui de apenas atacar a intolerância religiosa familiar como responsável por esse pensamento distorcido da sexualidade humana (e da crença em uma possível reversão), até porque Suellen está longe de ser uma devota religiosa. Ao mesmo tempo, o filme escancara o interesse, inclusive econômico, de muitas igrejas evangélicas neopetencostais para que esse tipo de “cura” seja vendido e difundido entre as pessoas.

Zona de intersecção

Apesar de lidar com temas sociais complexos e nada fáceis de se resolver, Pedágio é, curiosamente, um filme muito engraçado em vários momentos – nunca tirando sarro dos personagens oprimidos, mas nos fazendo rir das hipocrisias e situações que rondam esses tipos humanos em busca de oportunidades para saírem de um estado de estagnação, social e financeiro.

É como se o filme estivesse em uma zona de intermeio em que se equilibram os dramas sociais e as comédias da vida privada, filmados com muito sarcasmo, mas também boas doses de realismo social. É cômico, mas sabe ser duro e implacável com aquela gente refém das poucas oportunidades que lhes surgem na periferia.

Há, portanto, um duplo sentido do filme se situar numa área de pedágio, justamente um cruzamento entre dois lugares, um meio termo em que não há estabilidade nem senso de pertencimento – e só passa por ali quem paga. A própria relação entre mãe e filho é repleta de nuances que colocam os personagens no meio de um fogo cruzado em que há muito embate, mas também amor envolvido.

Markowicz poderia ter feito um filme muito mais pesado e belicoso, mas prefere o caminho tragicômico dos conflitos familiares e das hipocrisias sociais, capazes de revelar as falhas de caráter humanas e ainda colocar os personagens em xeque a partir das escolhas equivocadas que cada um faz – exceto Tiquinho, que quer apenas seguir sendo quem é.

O desenho narrativo do roteiro, especialmente no terço final do filme, é exemplar para inverter a equação dos dedos apontados, sem que o filme se torne meramente revanchista por causa disso. Nesse ponto, Pedágio revela-se quase como uma tragédia anunciada que apenas os personagens não conseguiram prever. O preço a se pagar pode ser muito caro e envolve um bem precioso que é a própria harmonia familiar.

Pedágio (Brasil, 2023)
Direção: Carolina Markowicz
Roteiro: Carolina Markowicz

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 03/12/2023)

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