Marinheiro das Montanhas e Nardjes A. / Entrevista com Karim Aïnouz

Ao encontro de si e do outro*

A carreira internacional de Karim Aïnouz caminha a todo vapor. O cineasta cearense, que reside há um bom tempo na Alemanha, estreou Firebrand no último Festival de Cannes, drama de época sobre a monarquia inglesa do século XVI, com Alicia Vikander e Jude Law no elenco. Um novo filme será rodado ano que vem com Kristen Stewart e Elle Fanning já confirmadas.

Mas agora, o cineasta lança nos cinemas ao mesmo tempo dois longas-metragens que também transcorrem em cenário internacional, mas possuem uma relação muito mais íntima com o diretor. Marinheiro das Montanhas e Nardjes A. remetem a uma mesma viagem que o cineasta fez à Argélia, em 2019, em busca de suas origens paternas. Um filme se desdobrou em dois, muito distintos entre si, mas interligados pelo mesmo processo de busca.

“Eu adiei muito essa viagem e pensei que não dava para fazê-la sem a minha mãe, porque a Argélia é um lugar que ela sempre quis conhecer. Mas ela faleceu em 2015, e eu, como um bom infiel, pensei que agora podia fazer a viagem sozinho sem ela saber”, confessou o cineasta em conversa com o A Tarde, por videoconferência, já que o cineasta estava justamente de volta à Argélia para participar de um encontro.

Essa foi a primeira vez que ele voltou ao país depois da viagem de 2019. “Eu comecei a ensaiar esse projeto em 2014, mas só depois que minha mãe foi embora eu pensei que podia viajar sem machucá-la. Tem alguma coisa de muito trágico, e consequentemente cinematográfico, em conhecer a terra de onde você vem depois dos 50 anos”, pontuou o diretor.

Criado pela mãe com o apoio de outras figuras femininas de sua família (algo registrado em um curta antigo do cineasta, Seams, de 1993), Aïnouz queria conhecer a terra natal de seu pai, mas não necessariamente encontrar com ele (que hoje mora na Europa). Os dois não possuem muita intimidade, desde quando ele deixou o filho pequeno e a mãe em Fortaleza prometendo voltar para buscá-los. Promessa que nunca se cumpriu.

Do pai para a mãe

Ficou a lacuna, mas também a vontade de conhecer a terra para onde o pai retornou e que prometeu ser a morada da família num futuro que não se concretizou. Em Marinheiro das Montanhas, o cineasta mistura as memórias pessoais com as impressões imediatas ao pisar e passar os dias pelo país tão sonhado. Primeiro na capital, Argel, e depois pelo interior, na região da Cabília, e também no pequeno vilarejo onde seu pai nasceu.

O filme é, de fato, um mergulho nas origens, e o espectador segue o fluxo de consciência do diretor que rememora as dinâmicas (e também as mágoas) familiares, enquanto desvela as paisagens e as pessoas de um país estrangeiro. O cineasta descobre, por exemplo, como o seu sobrenome é comum na Argélia, algo que ninguém estranha, diferente do que acontece no Brasil – a descoberta de um cemitério com uma série de lápides com o nome “Aïnouz” é uma imagem bem representativa disso.

Ele não esconde a referência aos diários de viagem e sua tradição na literatura que quis resgatar aqui. No entanto, constrói o texto narrado do filme como se fosse uma carta endereçada à mãe. “Eu achei que só montar as imagens não dava conta de contar o que é o país e as minhas impressões”, pontua o diretor, revelando que a ideia para a narração surgiu no processo de montagem do filme.

Não deixa de ser curioso que em uma viagem relacionada às suas origens paternas, seja ao encontro da mãe que ele se orienta.  “Ao contar as coisas para ela, o espectador pode adentrar a nossa conversa e eu também posso dividir coisas que eu não dividiria com quem eu não conheço”, explicou Aïnouz.

Essa estratégia narrativa dota o filme de uma intimidade que encontra eco na disposição do cineasta em compartilhar com o público um pouco da sua vida familiar, suas dores e anseios, e também nas próprias descobertas que o cineasta faz daquele universo novo e também de si mesmo. “Eu me dei conta de que eu tenho muito mais a contar para a minha mãe do que para meu pai”, complementa.

Dívida de luta

A viagem de Aïnouz, que não sabia exatamente qual filme sairia dali, acabou rendendo outro, como um acidente de percurso. Ao chegar à Argélia, o diretor se deparou com uma sociedade em convulsão social. Era a primeira vez, desde os anos 1980, que a população podia se reunir para protestar nas ruas, algo antes proibido. A partir de então, as manifestações se tornaram uma constante na capital argelina.

“Eu não pude resistir em documentar isso. Eu filmei achando que seria um material sobre o futuro pra usar num filme que fala do passado. Mas o negócio era tão potente, a sensação de estar nas ruas em insurreição, gritando e lutando pela possibilidade da volta da democracia de fato para a Argélia, que eu me dei conta que isso não era um pedaço do Marinheiro das Montanhas, mas tinha que ser um filme em si”, revela o cineasta.

É assim que nasce Nardjes A., esse outro longa que acompanha uma jovem militante (a moça do título) durante um período de 24 horas. Todo filmado com um smartphone, acompanhando a protagonista aonde ela vai em um dia de manifestação, Aïnouz descobre nela a força de mobilização popular que ele antevia nos seus próprios antepassados que lutaram pela independência da Argélia nos anos 1960.

“Eu fui fazer um filme sobre meu pai, mas que era mesmo sobre essa guerra de libertação em 1962. Esse é o tema do filme. Essa guerra aconteceu nos anos 1960 e eu vim para a Argélia, em 2019, meio que escavando os vestígios dessa guerra”, relembra o diretor ao contar que a família do seu pai lutou no processo de libertação do país naquela época. Assim como Nardjes, filha de manifestantes que também batalharam pela independência, Aïnouz sente como se tivesse uma dívida com esse país.

O filme não deixa de fazer um paralelo com as manifestações estudantis que tomaram conta do Brasil na década passada e espelha a vontade de luta de um povo que precisa passar por outro processo de libertação de um governo autoritário, como é esse que está no poder atualmente.

Ambos os filmes também possuem um ponto de encontro ao traçar histórias devedoras de lutas antigas e ancestrais que reverberam nos sujeitos que encontramos hoje. Seja resgatando o passado ou antevendo um futuro, ambos os trabalhos, vistos em conjunto, perfazem um percurso de busca que se complementa pelo olhar e pela própria trajetória de Aïnouz.

Marinheiro das Montanhas (Brasil Brasil/França/Alemanha/Argélia, 2021)
Direção: Karim Aïnouz
Roteiro: Karim Aïnouz, Murilo Hauser e Heitor Lorega

Nardjes A. (Brasil/Argélia/França/Alemanha, 2020)
Direção: Karim Aïnouz

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 01/10/2023)

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